Maratona Atlântica Boavista–Jornal do Brasil
A largada e a chegada eram na praia do Leme, passando por Urca, Aterro do Flamengo, Lagoa (apenas nas duas primeiras edições), Copacabana, Ipanema e Leblon.
A corrida era realizada normalmente no início de julho, exceto em 82, quando foi realizada em agosto por conta da Copa do Mundo de Futebol.
Ganhou esta prova, o nosso compatriota Delfim Moreira no tempo de 2:15:37
Como curiosidade o tempo limite era de 3h43'
https://desdemoleque.wordpress.com/1982/08/08/competicao-10-maratona-atlantica-boavistajornal-do-brasil/
imagem do jornal e foto dessa prova.
quinta-feira, 29 de agosto de 2019
segunda-feira, 19 de agosto de 2019
As primeiras corridas de Analice no Brasil
A primeira corrida da Analice foi na 2ª Prova Feminina da AVON, realizada no Rio de Janeiro, em outubro de 1981.
Analice referiu que, dias depois, foi à prova do Corcovado, mais conhecida por Corrida do Cristo Redentor (8km, sempre a subir), que se realizou em outubro e a terceira uma meia-maratona. Esta meia-maratona era designada por "Corrida da Ponte", ligava Niterói ao Rio, e foi realizada em 29 de novembro de 1981.
As fotos são dessa meia-maratona
Estas são duas fotos curiosas: numa Analice tem o dorsal da Avon e noutra aparecem uns ‘índios' vestidos a rigor, ladeando as atletas. Que provas seriam essas, em que local e em que ano? Urna das atletas que estava nas duas fotos era a amiga da Analice, Auri Pereira da Cruz.
Contactei a Auri que, amavelmente, me elucidou. Com os índios da tribo Xavante, foi a Corrida internacional de São Silvestre em São Paulo, no ano de 1982. Nessa época a corrida era à noite, atualmente é de dia (a nossa Rosa Mota é recordista, com seis vitórias consecutivas nos anos 80).
Na que têm Avon no dorsal, foi em São Paulo, na Corrida Feminina da Avon, em volta do Parque Ibirapuera no ano de 1986, pouco antes de Analice dizer adeus ao Brasil e vir correr os 100 km em Santander (Espanha).
Analice referiu que, dias depois, foi à prova do Corcovado, mais conhecida por Corrida do Cristo Redentor (8km, sempre a subir), que se realizou em outubro e a terceira uma meia-maratona. Esta meia-maratona era designada por "Corrida da Ponte", ligava Niterói ao Rio, e foi realizada em 29 de novembro de 1981.
As fotos são dessa meia-maratona
Estas são duas fotos curiosas: numa Analice tem o dorsal da Avon e noutra aparecem uns ‘índios' vestidos a rigor, ladeando as atletas. Que provas seriam essas, em que local e em que ano? Urna das atletas que estava nas duas fotos era a amiga da Analice, Auri Pereira da Cruz.
Contactei a Auri que, amavelmente, me elucidou. Com os índios da tribo Xavante, foi a Corrida internacional de São Silvestre em São Paulo, no ano de 1982. Nessa época a corrida era à noite, atualmente é de dia (a nossa Rosa Mota é recordista, com seis vitórias consecutivas nos anos 80).
Na que têm Avon no dorsal, foi em São Paulo, na Corrida Feminina da Avon, em volta do Parque Ibirapuera no ano de 1986, pouco antes de Analice dizer adeus ao Brasil e vir correr os 100 km em Santander (Espanha).
quinta-feira, 8 de agosto de 2019
Onde nasceu Analice
Pesquisei pela vila Esperança, local assinalado como lá ter nascido a Analice. Havia alguma coisa que não batia certo. Nos anos que levei de boleia a Analice, sei a história da vida dela. Sabia que tinha nascido num local muito pobre do estado da Paraíba. Vila Esperança não me parecia ser o local por ela mencionado.
As casas, o ambiente rural, a pobreza adjacente, o que me contava sobre como era lá a vida, os casamentos e tudo o mais, só podia ser num recanto muito para além da vila.
Entrei em contacto com a Analice. Ia a caminho do trabalho (como sabem para fazer face à vida tem que tratar de uma pessoa idosa). Sem Metro, aguardava a camioneta para ir para Lisboa.
E durante algum tempo fiz-lhe reviver o local onde tinha nascido e de que tem pequenas réstias. Vila Esperança ficou logo fora das memórias, não podia ser lá. Falamos do local que poderia ser; Lagoa Verde foi um dos nomes referidos, mas era ainda um pouco mais além. Lembrou-se que ao local onde nasceu chamavam de "os macacos", nome talvez depreciativo com que tratavam os naturais desse local.
Conforme ia-me dizendo os nomes eu ia pesquisando e esta designação não constava como localidade.
E a Analice dizia-me: "Mário eu sei o nome mas agora não me vem à cabeça".
Quando estávamos para desistir, fez-se luz e tudo porque a Analice lembrou-se dos avós que moravam a poucos metros da casa dos pais (aqui ela disse que não sabe se nasceu no mato, local onde nasce a maioria por falta de condições dentro de casa).
E surgiu o nome e até senti um arrepio, a Analice só se lembrou do nome agora passado dezenas de anos e graças à minha insistência.
Analice nasceu a 20 de dezembro de 1943 num sítio chamado "Riacho do Boi"
Aqui fica para a posteridade (em montagem), Analice no braço do Açude de Coremas - Riacho do Boi.
... E aos poucos vai-se construindo a vida da Analice.
As casas, o ambiente rural, a pobreza adjacente, o que me contava sobre como era lá a vida, os casamentos e tudo o mais, só podia ser num recanto muito para além da vila.
Entrei em contacto com a Analice. Ia a caminho do trabalho (como sabem para fazer face à vida tem que tratar de uma pessoa idosa). Sem Metro, aguardava a camioneta para ir para Lisboa.
E durante algum tempo fiz-lhe reviver o local onde tinha nascido e de que tem pequenas réstias. Vila Esperança ficou logo fora das memórias, não podia ser lá. Falamos do local que poderia ser; Lagoa Verde foi um dos nomes referidos, mas era ainda um pouco mais além. Lembrou-se que ao local onde nasceu chamavam de "os macacos", nome talvez depreciativo com que tratavam os naturais desse local.
Conforme ia-me dizendo os nomes eu ia pesquisando e esta designação não constava como localidade.
E a Analice dizia-me: "Mário eu sei o nome mas agora não me vem à cabeça".
Quando estávamos para desistir, fez-se luz e tudo porque a Analice lembrou-se dos avós que moravam a poucos metros da casa dos pais (aqui ela disse que não sabe se nasceu no mato, local onde nasce a maioria por falta de condições dentro de casa).
E surgiu o nome e até senti um arrepio, a Analice só se lembrou do nome agora passado dezenas de anos e graças à minha insistência.
Analice nasceu a 20 de dezembro de 1943 num sítio chamado "Riacho do Boi"
Aqui fica para a posteridade (em montagem), Analice no braço do Açude de Coremas - Riacho do Boi.
... E aos poucos vai-se construindo a vida da Analice.
quarta-feira, 7 de agosto de 2019
Tributo a Analice Silva - Estórias de uma vida
Riacho do Boi - Vila de Esperança
Ali nascera Analice, em 20 de dezembro de 1943. A povoação não era mais que pequenas casas de tabique e colmo, onde a pobreza grassava. Viviam do que o campo dava e da pesca do riacho que lhe dá o nome e banha o estado de Paraíba.
Escrava
De seis irmãos só sobreviveram dois, ela, Analice, e uma irmã mais nova. Com três anos foi vendida a uma senhora da Campina Grande. Escravizada, trabalhava a troco de comida (quando havia), “era gente pobre armada em rica, que queria ter criados, mas que não podia pagar. E então tinha escravos.”
Analice com 4/5 anos resolve fugir. Sem destino, mete-se à estrada de terra vermelha para fugir dos maus tratos e da miséria. A sua falta é notada e logo a procuram a cavalo pelas redondezas. Analice sente o trotar e esconde-se. Mas é vista e castigada.
Ameaçada de morte
Analice continuava na sua vida de escrava. A senhora que a escravizava, fazia com que a Analice tomasse conta da imensa filharada que tinha a troco de nada. Analice teve os seus primeiros sapatos quando juntou castanhas de caju e os vendeu pela região. Custaram 20 cruzeiros. Só os calçava quando entrava na cidade (vila na altura) de Esperança. Até lá ia descalça. No meio de tanta miséria, Analice é colocada na rua quando tinha perto de 8 anos, por ação de uma das filhas da ‘mãe de criação’ como Analice chamava a quem servia.
Com receio que Analice herdasse um «pedacinho de terra» com uma barraca por morte da mãe, tudo fez para que a expulsassem de casa, contando a situação a um irmão. “Se não saísse de casa seria morta” – ameaçou o irmão. E Analice é colocada no meio da rua.
Incêndio e morte
«Papai bebia muito. E quando pegava a gente para bater, batia mesmo. Ele não batia com intenção de matar, mas aconteceu»
Sendo uma família numerosa, a mais velha das irmãs de Analice tomava conta dos irmãos, na ausência dos pais, teria essa irmã, 4/5 anos. A casa era uma barraca, e quando os pais saíam ficavam fechados: a irmã mais velha, Analice, a irmã mais nova e mais um ainda bebé. Chora o bebé e a irmã mais velha com uma lamparina, procura a chucha, debaixo de uma rede que ali estava. Queima a rede, e pega fogo a essa parte do quarto. Aflita a irmã pega no bebé e nas irmãs e foge para outra dependência.
Quando o pai chega e como a porta estava fechada por dentro, arromba-a e vê o estrago provocado pelo incêndio. Em fúria, dá uma tremenda tareia na filha mais velha. De tal forma foi a tareia, que lhe fez uma ferida nas costas. A ferida infeccionou e, sem tratamento, a criança acabou por morrer.
As desventuras desta mulher não acabam por aqui. Analice foi depois para casa de uns parentes que também não gostavam dela. Analice era como a ‘ovelha negra’ daquela família. Via para além dos horizontes que limitavam aquele povo apelidado de ‘macacos’ por outros povos em redor. Analice era diferente e foi isso que, mais tarde, se veio a confirmar.
O Casamento
Pobre que é pobre na hora do casamento, tenta tornar a cerimónia a mais “badalada” para criar ‘inveja’ na vizinhança. Empenha tudo o que pode, mas festa é festa e casamento tem que ser o mais ‘chique’, dentro das limitações que a pobreza lhes dá.
Casamento em Riacho do Boi. Toda a povoação convidada e a nossa Analice ainda muito novita, ali estava com o único par de sapatos que tinha, comprados à custa da venda da castanha de caju.
Panelas ao lume, há que cozer o peixe a tempo. A carne não era muito abundante e por isso, o peixe era rei da festa.
Calor imenso e a cerimónia começa. O padre para mostrar que sabia da poda, vai lendo a bíblia, faz recomendações aos ‘pombinhos’ e a comida a começar a ‘fermentar’ devido ao calor. Casamento terminado, há que ir enchendo o que havia de comida.
Era já insuportável o cheiro que saía das panelas. Analice não lhe tocava. A mãe bem lhe dizia para comer pois momentos como esse não abundavam, o de comer de graça… e Analice disse-me «Mário, eu até que gosto de peixe, mas com aquele cheiro… Então disse a mamãe que não gostava para ela não me forçar a comer».
A algazarra era muita, o primeiro pé de dança ia começar, de repente tudo começa a correr para as moitas mais próximas. O desarranjo intestinal foi tão grande, que para aquelas moitas foi um corrupio constante de convidados, noivos e o padre claro!
Menos a nossa Analice. Safou-se porque não gostava… daquele cheiro!
As fugas e o primeiro amor
Analice foge para a vila de Esperança, servindo e recebendo em troca, só comida, «Não havia aconchego, só violência. E então fugi». Volta de novo a fugir, desta vez para o Recife, levada por um casal. E é ali, no Recife, que encontra o primeiro amor da sua vida. Há casamentos que acontecem muitas vezes por uma necessidade premente de ter alguém que olhe por si e, Analice, não casando por amor, aprendeu a amar.
Encontrou o rapaz, Evandro, pescador de lagostas, numa festa da primavera no Recife. O casamento foi rápido, só tinha passado dois meses de namoro.
Analice viveu com ele seis meses. «Antes de nos casarmos, disse-lhe que tolerava tudo no casamento, menos porrada». Então o marido magoou-a de outras formas. «Estourava todo o dinheiro que ganhava em meninas e bebida. Mas eu fechava os olhos, desde que ele não me batesse».
Um empurrão levou a que Analice deixasse Evandro, praticamente apenas com o dinheiro suficiente (que Evandro guardava debaixo do colchão), para comprar um bilhete de autocarro para o Rio de Janeiro.
«Foram oito dias de viagem, por estradas de asfalto. Passei tanto frio e tanta fome que só eu sei.»
Início de uma nova etapa – a corrida!
No Rio de Janeiro, foi fazer limpezas e tratar de crianças quando se apercebeu que estava grávida. Como o marido não fazia ideia para onde Analice tinha fugido, Analice nada lhe disse: «Ele nem sabia que eu estava no Rio. Deixei-lhe um bilhete a dizer que tinha ido para norte, e vim para sul, para ele não me procurar.»
Sete meses de gravidez e o bebé nasceu morto: «Hoje, acho até que foi uma sorte. Eu não podia ter uma criança naquelas condições. Para quê? Para virar um malandro?» Nunca mais quis ter filhos.
Analice volta a ver o marido em 1977. Quando trabalhava numa empresa cinematográfica no Rio de Janeiro, Analice vai até ao Recife. Nunca se divorciaram. Mulherengo como era o marido, tinha este 10 filhos de mulheres diferentes. Evandro leva a mulher ao aeroporto e a partir dessa altura nunca mais se viram.
31 de dezembro de 1980, às 23h55’, Analice já com 37 anos, deixa de fumar. Tinha lido num jornal a notícia, de que os pulmões de um fumador precisam de dez anos para recuperar a saúde.
«Dez anos é muito tempo. Fiquei assustada. Então achei que a única maneira de voltar a ter os meus pulmões cor-de-rosa era correndo. E comecei logo nessa noite.»
A entrar o novo ano, Analice de chinelos e de ‘jardineira’, desce o calçadão de Copacabana e vai do Leme até ao Arpoador, ida e volta. Qualquer coisa como 16 km. "Fiquei toda partidinha."
Nesse mês de janeiro correu todos os dias, nunca mais parou, até que a morte a levou.
As suas primeiras provas
Analice compra o jornal e lê que se iria realizar um circuito de corrida feminino no Rio de Janeiro, promovido pela Avon: “Eu li no jornal: Corrida feminina Avon. E decidi participar. Fui lá e ganhei uma medalha e uma camiseta. Achei que era uma campeã. Uns dias depois, foi a corrida do Corcovado (8km). Mais uma medalha e outra camiseta. E no mês seguinte fiz a primeira meia-maratona. Demorei três horas”.
Um ano depois, chegaram a maratona e a primeira prova de 100 quilómetros (1983), entre Uberlândia e Uberaba, em montanha, sempre a subir e a descer. “Venci essa prova e fiz 11h42m, que passou a ser recorde sul-americano. E foi durante muito tempo. Nos três anos seguintes ganhei sempre essa corrida”.
Analice depois destes êxitos, começa a olhar para as provas internacionais. Queria fazer uma prova de 100 km no estrangeiro e havia uma em Santander (100km Pedestres de Cantabria - Cidade de Santander). Em 1986 apanha o avião e pisa terreno europeu.
“Eu sou feliz na corrida da montanha. Ali não tem novos nem velhos, grandes nem pequenos, doutores nem empregados, ali tem o atleta.”
100 km - uma das pioneiras
4 de outubro 1986 - 100km Pedestres de Cantabria - Cidade de Santander. Analice percorre esta prova em menos de 9 horas (em 1988 volta a participar e faz o tempo de 9:34:27).
“Fui lá e ganhei. Depois já não quis voltar para o Brasil. Fui para Madrid, procurei o consulado brasileiro e foi o embaixador que me deu o dinheiro para eu vir para Lisboa”.
Analice chegou a Portugal em 22 de outubro de 1986. Só conhecia uma pessoa, uma corredora amadora que era enfermeira no Hospital de São José, Eugénia Gaita. Arranjou emprego em casa de um casal na Av. João XXI, em Lisboa.
“Era como no Brasil — não ganhava. Trabalhava para ter comida e sítio onde dormir”.
Sem tempo para treinar, Analice arranjou um recurso. “Como o prédio da casa onde trabalhava tinha sete andares, subia e descia as escadas durante três horas seguidas. Dava para treinar”.
Nos dias mais calmos, conseguia ir até ao estádio do Inatel onde ficava a dar voltas à pista até contabilizar 50 quilómetros. Nos dias de descanso ia de transportes até ao Cais do Sodré e corria até Cascais, e voltava. Ou então apanhava um autocarro para Setúbal, e atravessava a Arrábida até Sesimbra.
“Eu não saía de casa para correr menos de três horas. Isso não é treino”.
As provas em Espanha não se ficariam por aqui. Em 3 de maio de 1992, volta a fazer 100 km em Palau de Plegamans (Barcelona), em 9.43.07 tendo ficado em 4º lugar.
Ali nascera Analice, em 20 de dezembro de 1943. A povoação não era mais que pequenas casas de tabique e colmo, onde a pobreza grassava. Viviam do que o campo dava e da pesca do riacho que lhe dá o nome e banha o estado de Paraíba.
Escrava
De seis irmãos só sobreviveram dois, ela, Analice, e uma irmã mais nova. Com três anos foi vendida a uma senhora da Campina Grande. Escravizada, trabalhava a troco de comida (quando havia), “era gente pobre armada em rica, que queria ter criados, mas que não podia pagar. E então tinha escravos.”
Analice com 4/5 anos resolve fugir. Sem destino, mete-se à estrada de terra vermelha para fugir dos maus tratos e da miséria. A sua falta é notada e logo a procuram a cavalo pelas redondezas. Analice sente o trotar e esconde-se. Mas é vista e castigada.
Ameaçada de morte
Analice continuava na sua vida de escrava. A senhora que a escravizava, fazia com que a Analice tomasse conta da imensa filharada que tinha a troco de nada. Analice teve os seus primeiros sapatos quando juntou castanhas de caju e os vendeu pela região. Custaram 20 cruzeiros. Só os calçava quando entrava na cidade (vila na altura) de Esperança. Até lá ia descalça. No meio de tanta miséria, Analice é colocada na rua quando tinha perto de 8 anos, por ação de uma das filhas da ‘mãe de criação’ como Analice chamava a quem servia.
Com receio que Analice herdasse um «pedacinho de terra» com uma barraca por morte da mãe, tudo fez para que a expulsassem de casa, contando a situação a um irmão. “Se não saísse de casa seria morta” – ameaçou o irmão. E Analice é colocada no meio da rua.
Incêndio e morte
«Papai bebia muito. E quando pegava a gente para bater, batia mesmo. Ele não batia com intenção de matar, mas aconteceu»
Sendo uma família numerosa, a mais velha das irmãs de Analice tomava conta dos irmãos, na ausência dos pais, teria essa irmã, 4/5 anos. A casa era uma barraca, e quando os pais saíam ficavam fechados: a irmã mais velha, Analice, a irmã mais nova e mais um ainda bebé. Chora o bebé e a irmã mais velha com uma lamparina, procura a chucha, debaixo de uma rede que ali estava. Queima a rede, e pega fogo a essa parte do quarto. Aflita a irmã pega no bebé e nas irmãs e foge para outra dependência.
Quando o pai chega e como a porta estava fechada por dentro, arromba-a e vê o estrago provocado pelo incêndio. Em fúria, dá uma tremenda tareia na filha mais velha. De tal forma foi a tareia, que lhe fez uma ferida nas costas. A ferida infeccionou e, sem tratamento, a criança acabou por morrer.
As desventuras desta mulher não acabam por aqui. Analice foi depois para casa de uns parentes que também não gostavam dela. Analice era como a ‘ovelha negra’ daquela família. Via para além dos horizontes que limitavam aquele povo apelidado de ‘macacos’ por outros povos em redor. Analice era diferente e foi isso que, mais tarde, se veio a confirmar.
O Casamento
Pobre que é pobre na hora do casamento, tenta tornar a cerimónia a mais “badalada” para criar ‘inveja’ na vizinhança. Empenha tudo o que pode, mas festa é festa e casamento tem que ser o mais ‘chique’, dentro das limitações que a pobreza lhes dá.
Casamento em Riacho do Boi. Toda a povoação convidada e a nossa Analice ainda muito novita, ali estava com o único par de sapatos que tinha, comprados à custa da venda da castanha de caju.
Panelas ao lume, há que cozer o peixe a tempo. A carne não era muito abundante e por isso, o peixe era rei da festa.
Calor imenso e a cerimónia começa. O padre para mostrar que sabia da poda, vai lendo a bíblia, faz recomendações aos ‘pombinhos’ e a comida a começar a ‘fermentar’ devido ao calor. Casamento terminado, há que ir enchendo o que havia de comida.
Era já insuportável o cheiro que saía das panelas. Analice não lhe tocava. A mãe bem lhe dizia para comer pois momentos como esse não abundavam, o de comer de graça… e Analice disse-me «Mário, eu até que gosto de peixe, mas com aquele cheiro… Então disse a mamãe que não gostava para ela não me forçar a comer».
A algazarra era muita, o primeiro pé de dança ia começar, de repente tudo começa a correr para as moitas mais próximas. O desarranjo intestinal foi tão grande, que para aquelas moitas foi um corrupio constante de convidados, noivos e o padre claro!
Menos a nossa Analice. Safou-se porque não gostava… daquele cheiro!
As fugas e o primeiro amor
Analice foge para a vila de Esperança, servindo e recebendo em troca, só comida, «Não havia aconchego, só violência. E então fugi». Volta de novo a fugir, desta vez para o Recife, levada por um casal. E é ali, no Recife, que encontra o primeiro amor da sua vida. Há casamentos que acontecem muitas vezes por uma necessidade premente de ter alguém que olhe por si e, Analice, não casando por amor, aprendeu a amar.
Encontrou o rapaz, Evandro, pescador de lagostas, numa festa da primavera no Recife. O casamento foi rápido, só tinha passado dois meses de namoro.
Analice viveu com ele seis meses. «Antes de nos casarmos, disse-lhe que tolerava tudo no casamento, menos porrada». Então o marido magoou-a de outras formas. «Estourava todo o dinheiro que ganhava em meninas e bebida. Mas eu fechava os olhos, desde que ele não me batesse».
Um empurrão levou a que Analice deixasse Evandro, praticamente apenas com o dinheiro suficiente (que Evandro guardava debaixo do colchão), para comprar um bilhete de autocarro para o Rio de Janeiro.
«Foram oito dias de viagem, por estradas de asfalto. Passei tanto frio e tanta fome que só eu sei.»
Início de uma nova etapa – a corrida!
No Rio de Janeiro, foi fazer limpezas e tratar de crianças quando se apercebeu que estava grávida. Como o marido não fazia ideia para onde Analice tinha fugido, Analice nada lhe disse: «Ele nem sabia que eu estava no Rio. Deixei-lhe um bilhete a dizer que tinha ido para norte, e vim para sul, para ele não me procurar.»
Sete meses de gravidez e o bebé nasceu morto: «Hoje, acho até que foi uma sorte. Eu não podia ter uma criança naquelas condições. Para quê? Para virar um malandro?» Nunca mais quis ter filhos.
Analice volta a ver o marido em 1977. Quando trabalhava numa empresa cinematográfica no Rio de Janeiro, Analice vai até ao Recife. Nunca se divorciaram. Mulherengo como era o marido, tinha este 10 filhos de mulheres diferentes. Evandro leva a mulher ao aeroporto e a partir dessa altura nunca mais se viram.
31 de dezembro de 1980, às 23h55’, Analice já com 37 anos, deixa de fumar. Tinha lido num jornal a notícia, de que os pulmões de um fumador precisam de dez anos para recuperar a saúde.
«Dez anos é muito tempo. Fiquei assustada. Então achei que a única maneira de voltar a ter os meus pulmões cor-de-rosa era correndo. E comecei logo nessa noite.»
A entrar o novo ano, Analice de chinelos e de ‘jardineira’, desce o calçadão de Copacabana e vai do Leme até ao Arpoador, ida e volta. Qualquer coisa como 16 km. "Fiquei toda partidinha."
Nesse mês de janeiro correu todos os dias, nunca mais parou, até que a morte a levou.
As suas primeiras provas
Analice compra o jornal e lê que se iria realizar um circuito de corrida feminino no Rio de Janeiro, promovido pela Avon: “Eu li no jornal: Corrida feminina Avon. E decidi participar. Fui lá e ganhei uma medalha e uma camiseta. Achei que era uma campeã. Uns dias depois, foi a corrida do Corcovado (8km). Mais uma medalha e outra camiseta. E no mês seguinte fiz a primeira meia-maratona. Demorei três horas”.
Um ano depois, chegaram a maratona e a primeira prova de 100 quilómetros (1983), entre Uberlândia e Uberaba, em montanha, sempre a subir e a descer. “Venci essa prova e fiz 11h42m, que passou a ser recorde sul-americano. E foi durante muito tempo. Nos três anos seguintes ganhei sempre essa corrida”.
Analice depois destes êxitos, começa a olhar para as provas internacionais. Queria fazer uma prova de 100 km no estrangeiro e havia uma em Santander (100km Pedestres de Cantabria - Cidade de Santander). Em 1986 apanha o avião e pisa terreno europeu.
“Eu sou feliz na corrida da montanha. Ali não tem novos nem velhos, grandes nem pequenos, doutores nem empregados, ali tem o atleta.”
100 km - uma das pioneiras
4 de outubro 1986 - 100km Pedestres de Cantabria - Cidade de Santander. Analice percorre esta prova em menos de 9 horas (em 1988 volta a participar e faz o tempo de 9:34:27).
“Fui lá e ganhei. Depois já não quis voltar para o Brasil. Fui para Madrid, procurei o consulado brasileiro e foi o embaixador que me deu o dinheiro para eu vir para Lisboa”.
Analice chegou a Portugal em 22 de outubro de 1986. Só conhecia uma pessoa, uma corredora amadora que era enfermeira no Hospital de São José, Eugénia Gaita. Arranjou emprego em casa de um casal na Av. João XXI, em Lisboa.
“Era como no Brasil — não ganhava. Trabalhava para ter comida e sítio onde dormir”.
Sem tempo para treinar, Analice arranjou um recurso. “Como o prédio da casa onde trabalhava tinha sete andares, subia e descia as escadas durante três horas seguidas. Dava para treinar”.
Nos dias mais calmos, conseguia ir até ao estádio do Inatel onde ficava a dar voltas à pista até contabilizar 50 quilómetros. Nos dias de descanso ia de transportes até ao Cais do Sodré e corria até Cascais, e voltava. Ou então apanhava um autocarro para Setúbal, e atravessava a Arrábida até Sesimbra.
“Eu não saía de casa para correr menos de três horas. Isso não é treino”.
As provas em Espanha não se ficariam por aqui. Em 3 de maio de 1992, volta a fazer 100 km em Palau de Plegamans (Barcelona), em 9.43.07 tendo ficado em 4º lugar.
A brasileira mais portuguesa de Portugal
“Tenho muita pena de nunca ter contado os quilómetros que já fiz na vida. De certeza que estava no Guiness”.
A primeira Ultra que se conste em Portugal, foi a segunda edição das 12 horas de Vila Real de Santo António, a 18 de Abril de 1987, onde percorreu 100.900 metros, tendo ficado em 6º lugar (informação de Jorge Branco)
Provas de 100 km de estrada, fez cerca de 22. “As de 100 km de montanha foram muitas mais, mas já perdi a conta”. Caminhos do Tejo (146 km), foi a Espanha correr provas de 167 km, Alhambra à Serra Nevada (50 km, sempre a subir), fez Lisboa-Mação (254 km). A maior prova em que entrou na vida foi a Volta ao Minho (385 km). Em 2003 corre em Nova Iorque e, em 2004, Boston (EUA)
Em 2013 participa na Maratona dos Sabres, uma prova de 243 km pelo deserto do Sahara, em Marrocos, no tempo de 46 horas, 41 minutos e 16 segundos.
“É um sonho. É o meu sonho. Sei que não vai acontecer, porque é uma prova muito cara, não tenho dinheiro e ninguém quer patrocinar uma velha. Mas enquanto for viva vou ter esperança”.
E esse sonho foi conseguido graças aos amigos que cotizaram para o efeito, e a Carlos Sá.
Em 2015, em novembro, Analice vai ao Brasil, país do berço, da infância pobre, do casamento sem amor e do trabalho árduo, para cumprir outro sonho: correr 230 quilómetros no "Cassino Ultra Race" que se realizou em 13/14/15nov, no Rio Grande do Sul, na maior praia do mundo.
Conseguiu o montante financeiro que precisava para estar na competição à hora marcada, mais uma vez com a ajuda dos amigos, mas encontrou um adversário maior do que ela: «O El Niño decidiu dar a cara, com muitos relâmpagos, granizo, raios e tiveram de cancelar a prova»
Uma das ambições de Analice, era correr os Alpes encantados de Mont Blanc – 170 quilómetros, numa das provas de trilhos mais exigentes do mundo – e o Tor des Géants, o "Tour dos Gigantes" – um ultra trail de 300 quilómetros por Itália.
Não chegou a concretizar este sonho.
Um exemplo de vida
«A corrida é como o trabalho. Você vai ficar na cama, 'chocando', quando sabe que tem de se levantar cedinho para ir trabalhar? A corrida é a mesma coisa.».
Fizesse frio, calor, vento ou gelo, Analice estava lá.
A maior prova que fez, «direta, sem ser por etapas», foram os 150 quilómetros no parque urbano de Vale de Cambra: 24 horas a correr.
Quando chegava à meta, bastava «continuar a andar», sem massagens ou outras terapias. Durante «pouco tempo, algumas horas,» sente «uma dor nas pernas, mas nada de alarme». Por isso, quando se lhe perguntava pelas mazelas do corpo, respondia: «Até agora, Deus tem-me poupado».
Nem as artroses, nem o cansaço de um dia de trabalho a faziam parar. Vestia a camisola da Associação Mundo da Corrida, que lhe patrocinava as corridas sempre que podia, mas Analice não esquecia a importância de ajudar os outros: «Quero fazer mais vezes a corrida contra a Esclerose Múltipla».
Por vezes, era convidada para visitar lares e escolas, para inspirar jovens e graúdos com a sua história de vida. O mais importante? Passar a mensagem de que ninguém é vítima das suas circunstâncias e de que não podemos deixar que os problemas, mesmo os de saúde, nos afetem.
A última participação da Analice, foi a São Silvestre de Almada, a 17 de dezembro de 2016
Nada podia parar o tumor no pâncreas, que tinha ramificações no fígado, no último grande desafio que agarrou na vida. Foi revelada em janeiro de 2017, no grupo de fãs no Facebook, a doença que lhe tinha sido diagnosticada e recebeu durante semanas várias mensagens e fotografias de amigos a mostrar a sua solidariedade. A ultra maratona da sua vida tinha acabado.
Analice Silva, o melhor sinónimo para a palavra esperança, morreu no dia 23 de fevereiro, aos 73 anos, vítima do cancro.
A nossa Analice teve uma missão e essa continua na lembrança de todos nós, nunca deixar que a descrença nos vença. A morte levou-a, mas o exemplo dela continua.
pesquisa e texto: Mário Lima
fontes:
Orlando Duarte
Jorge Branco
Auri Pereira da Cruz
https://nit.pt/fit/ginasios-e-outdoor/morreu-analice-silva-atleta-brasileira-conquistou-portugal-historia
https://www.sabado.pt/vida/obituario/detalhe/analice-silva-o-melhor-sinonimo-de-esperanca-1943-2017
http://papakilometros.blogspot.com/2012/10/analice-silva-historia-de-vida-de-uma.html
https://www.revistasauda.pt/noticias/Pages/A-maratonista-de-73-anos.aspx
https://www.youtube.com/watch?time_continue=518&v=Hxe1q1qLh34
http://mirobrigatrailrun.blogspot.com/
https://www.institutoeleonoramendonca.org.br/
https://books.google.pt/books?id=HlNR4KrR7hEC&pg=PA72&lpg=PA72&dq=corrida+avon+brasil+1981&source=bl&ots=MMil-vD93S&sig=ACfU3U2ZElr9btcLP3qXQK0WYe3xzGJu2g&hl=pt-PT&sa=X&ved=2ahUKEwics6TnpofkAhXGx4UKHQf1BTQQ6AEwFnoECAgQAQ#v=onepage&q=corrida%20avon%20brasil%201981&f=false
http://media.diariocoimbra.pt/prd-ios/da/57df095b-4b20-4e99-b8a4-47f85e7eaa97.pdf
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